Levantei-me sem dores, com a energia normal de quem bebe café e sai de casa em pulgas para ver o tão esperado concerto de música clássica.
Mas percorri todo o parque da Gulbenkian, depois de subir e descer escadas do metro, comboio e sei lá mais o quê, tudo para chegar minutos antes e entrar naquela sala ainda agitada de pessoas mascaradas à procura do seu lugar regrado por distância.
Não admira que me sinta ainda entusiasmada mas já com a cabeça um pouco a andar à roda. Oiço a apresentadora explicar que a obra se divide em vários actos e os primeiros são de estórias infantis, desenhadas na sua composição com muito detalhe, que nos daria a oportunidade de ouvir algo complexo e difícil de uma forma simples e bela. Fico ainda mais curiosa e sinto o calor do pequeno sprint que fiz perdida à volta daquele edifício. Apagam as luzes e abrem as cortinas por trás dos músicos. Uma janela para o lago do parque, que cenário! O maestro entra, formoso e famoso e não se ouve um suspiro. Vai começar…
Lembro-me que nos dois primeiros actos a minha pele esteve sempre arrepiada mas o meu cérebro não conseguia assimilar… Estava ainda a despir-se do que se passava lá fora. A semana fora intensa e era preciso deixar tudo à porta mas entrou rápido demais e a melodia acompanhava aquele despir das roupas molhadas e pensamentos ensopados, como se estivesse farta deles e tivesse pressa de começar outra vez.
Sinto a cabeça dormente, foi rápido demais para uma pessoa que está a recuperar de uma exaustão neurológica e psicológica. Mas agora estava ali, e despida já estava, mesmo assim.
Então chegou o terceiro acto. Comecei a reconhecer a linguagem dos instrumentos, entendi o diálogo tumultuoso da “Bela e o Monstro” que depois se torna príncipe entoado já por cordas de harpa e acaba tão vigoroso que há uma pausa silenciosa seguida de um aplauso esplendoroso. E eu já estava no filme… Entrei no 4º acto como se vivesse uma cena da Jane Austen… Sentia a nostalgia de algo fantasiado no meio de uma beleza surreal que invadiu os meus ouvidos, enquanto me distraía a ver os patos lá fora a dançar no lago ao som daquela composição. Já não sei bem em que parte limpei a cara molhada mas recordo-me da brisa que me invadiu o peito, porque por um lado estava feliz demais e não sabia conter todo ar que estava lá dentro, mas ao mesmo tempo tinha uma saudade avassaladora do que ainda não vivi.
Como se aquele momento me profetizasse o futuro, uma simples melodia, antecipava em mim a certeza de que esta frágil capa um dia se rasga e revela um coração cheio, com cicatrizes e estrias de tanto esticar e encolher, mas cheio de amor para dar e vender. Um coração livre que celebra a vida com um aplauso emocionado, de pé e sorriso nos lábios por cada acto tocado, cada solo, por cada instrumento mais afinado da nota mais triste à mais saltitante, vivida na mente d’Aquele que dirige a orquestra e de lágrimas nos olhos, tal como eu, se vira para receber o meu aplauso, enquanto eu me prostro porque não sei mais o que fazer para lhe agradecer dirigir esta obra magnífica que Ele diz ser eu mas que foi criada por Ele. Obrigada Maestro.
“Pois possuiste os meus rins; entreteceste-me no ventre de minha mãe. Eu te louvarei, porque de um modo terrível e tão maravilhoso fui formado; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem. Os meus ossos não te foram encobertos, quando, no oculto, fui formado e entretecido, como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu corpo ainda informe, e no teu livro todas estas coisas foram escritas; as quais iam sendo, dia a dia, formadas, quando nem ainda uma delas havia. E quão preciosos me são, ó Deus, os teus pensamentos! Quão grandes são as somas deles!”
“O Senhor teu Deus veio para viver no meio de ti. Ele é um poderoso Salvador e far-te-á vencer; terá grande prazer em ti; amar-te-á e não mais te acusará. Ouço um alegre cântico que traduz a própria alegria que o Senhor sente em ti.”
Raquel Costa
Formada em Serviço Social, fundadora do projecto www.worshiphouses.org e Líder de Louvor na Igreja CCVA Alverca