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A Voz – Marta Pego e Pinto

A Voz – Marta Pego e Pinto

860 1280 Aliança Evangélica Portuguesa

O princípio da narrativa divina – o Génesis – inclui várias histórias de famílias, com Adão e Eva à cabeça. No entanto, a mais longa e densa é a de Abraão e Sara, que aparecem no fim da genealogia do capítulo 11. Aí Sara merece apenas dois breves comentários descritivos, que não deixam de ser significativos: ela é “mulher de Abrão” e “estéril”. Dizer isto, no contexto da altura, era dizer que Sara não tinha valor algum. A sua participação na grande narrativa poderia bem terminar ali…

Bem, nós que conhecemos esta história sabemos que não foi isso que aconteceu. A promessa feita a Abraão – “Farei de ti uma grande nação… e em ti serão benditas todas as famílias da terra.” – será cumprida por meio de Sara, apesar de todas as adversidades pessoais e circunstanciais. Quando chegamos ao capítulo 21 de Génesis, regozijamo-nos com Sara pelo nascimento do seu filho Isaque. A infertilidade deu lugar à fertilidade, a invisibilidade à visibilidade, o choro ao riso. E Sara sabe quem fez tudo isso – “Deus me trouxe riso”!

Essa nova identidade, adquirida após muito sofrimento e fruto do reconhecimento que Deus estava presente na sua história particular, permitiu a Sara tomar posição quando a tensão voltou ao seio familiar. Numa situação muito delicada, ela seguiu a sua intuição e protegeu o seu filho, e a herança que lhe estava prometida, face a Ismael, filho de Abraão com Agar. E Deus reconhece e reafirma Sara nesse papel protetor. Ele diz ao desgostoso Abraão: “Em tudo o que Sara te diz, ouve a sua voz…”

A história continua e Deus não irá desamparar nem Agar, nem o seu menino. Aliás, ele escuta a sua voz de lamento e responde com uma promessa também. Contudo, o ponto que quero sublinhar prende-se com a descoberta de Sara da sua voz, que advém do reconhecimento da ação de Deus na sua vida e que lhe permite assumir plenamente a sua vocação, não apenas de mãe de Isaque, mas de mãe da promessa, promessa na qual somos também incluídos nós.

Ter uma “boa voz” faz toda a diferença. Há concursos na TV que exaltam as vozes poderosas e afinadas. Há vozes que mexem connosco mais intimamente do que outras. Também não ficamos indiferentes a alguém capaz de tomar a palavra e de a discorrer com clareza e profundidade. Mas as vozes que falam mais “alto” são aquelas que brotam de um coração sincero, que são fruto de experiências genuínas e que encontram o seu fundamento no propósito que Deus oferece a cada um(a).

A busca da nossa voz própria é difícil. Queremos soar como os outros. Proferimos palavras emprestadas. Silenciamo-nos a nós mesmas por esta ou aquela razão. Por vezes, são precisos muitos anos para descobrirmos a “nossa voz”. Mas devemos descobri-la para usá-la como instrumento de bênção e para glória de Deus!

Sara permanece como uma figura secundária na história do Génesis, tal como a maior parte das mulheres nas restantes Escrituras. E ainda bem, visto que o grande protagonista é Jeová. No entanto, a Palavra de Deus parece querer, à revelia quase do contexto patriarcal em que foi escrita, chamar a atenção para o papel das mulheres no desenrolar da narrativa bíblica.

Basta abrir o Velho Testamento para encontrarmos vários episódios em que a presença e a voz de mulheres fieis se fazem sentir e assim permitem que a história avance de acordo com a vontade de Deus.

Em Juízes 4 lemos que a profetiza Débora convoca Baraque, em nome de Deus, para ir para a batalha com a promessa de vitória. E Baraque diz a Débora: “Se fores comigo irei; mas se não fores comigo, não irei.” Ao que Débora responde: “Certamente irei contigo. Porém não será tua a honra desta expedição, pois nas mãos de uma mulher o Senhor entregará a Sísera.” E essa mulher foi Jael.

No livro de Rute, surgem-nos duas mulheres destemidas, prontas para avançar para lá das amarguras da vida. Rute, uma pobre mulher estrangeira, não baixa os braços perante a adversidade, não se torna passiva, mas segue a estratégia cuidadosamente pensada pela sogra Noemi. Na sua fragilidade e humildade, ela arrisca e acaba ouvindo estas palavras de Boaz: “Tudo o que pedires, eu te farei.” (Rute 3)

Também a história de Ana, registada nos primeiros capítulos de I Samuel, está repleta de ensinamentos. Ana é uma mulher profundamente humilhada, devido à sua esterilidade e ao facto de partilhar o marido com uma mulher que a despreza. A sua dor calara-a ao ponto de nem no seu lamento perante o Senhor se ouvir a sua voz (I Sam. 1:13). Mas é na presença de Deus em oração que Ana recupera a sua voz, que afirma quem ela realmente é e que se inicia a sua restauração. A partir daquele momento, Ana passa a ser o sujeito de toda a ação e o seu marido reconhece isso: “Faz o que bem te parecer em teus olhos…”

Por fim, menciono Hadassa, mais conhecida pelo seu nome persa, Ester. Ela é uma jovem judia que esconde deliberadamente a sua identidade para casar com um rei pagão. Mesmo depois de se tonar rainha, Ester continua a ser passiva, complacente, obedecendo em tudo a seu primo Mordecai. O seu sossego só é perturbado quando um édito do rei visando a destruição do povo judeu é emitido. Nesse momento, Ester é confrontada com a sua verdadeira identidade. Apesar de todos os seus medos e hesitações, a jovem rainha acaba por assumir a sua vocação – enfrentar o rei e dissuadi-lo do seu plano. Hadassa descobre a sua voz e todo o povo, incluindo Mordecai, passa a depender dela. “Assim Mordecai se foi, e fez conforme tudo o que Ester lhe tinha ordenado.” (Ester 4:17)

A Bíblia está cheia de histórias no feminino que nos devem fazer refletir, inclusive sobre o papel atribuído à mulher na igreja. Precisamos das vozes de todos, homens e mulheres, velhos e novos, semelhantes e diferentes, para discernirmos a voz de Deus. Em particular, como mulheres, devemos abraçar a forma maravilhosa como Deus criou cada uma de nós, devemos aceitar a nossa vocação, qualquer que ela seja e, acima de tudo, devemos assumir a nossa voz própria, sem receio, no poder do Espírito e para que o Reino de Deus avance a cada dia neste nosso mundo!

Marta Pego e Pinto
Missionária com Agape Portugal
Bibliografia: James, Carolyn Custis, “Lost Women of the Bible”, Zondervan

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