Na caixa do correio, uma notificação do Tribunal da cidade. Sem perceber o porquê e, muito menos, o para quê do meu nome como destinatária, foi com surpresa que verifiquei tratar-se do assunto que transformara, havia bastante tempo, um prometedor fim de tarde de verão em grande tristeza.
Estacionara o automóvel, por poucos minutos. Terminara a minha missão de apoio aos netos deixando-os em casa dos pais e voltara, feliz, depois das despedidas feitas de sorrisos e beijos. Assim acontecia, em cada tarde com as novidades que me contavam e a alegria, sempre renovada, pelo encontro com a mãe que esperava os seus meninos com um abraço sem fim.
Ao regressar ao carro uma surpresa me aguardava: o vidro duma janela estilhaçado na rua e o desaparecimento da minha bolsa, a habitual mala das senhoras que tudo tem dentro.
“Não posso acreditar!” foram as minhas palavras, numa sensação mista de pesadelo ou sonho, de aflição e incredulidade pelo que acontecera em tão pouco tempo, proporcionado pela minha lamentável imprevidência de a ter deixado à vista.
… E veio a Polícia e alguns vizinhos, e o desapontamento dentro de mim era enorme, como se me sobrassem mãos para segurar o vazio das chaves de casa, do telemóvel, da carteira com os documentos bancários e de identificação e algum (bastante) dinheiro.
Caiu a noite. O automóvel foi deixado num local resguardado para poder ser objecto de perícia que pudesse detectar a presença de impressões digitais.
Como foi possível isto acontecer? Tantas vezes sabemos de acontecimentos destes e de outros, incomparáveis na sua gravidade e consequências. Tentando relativizar o meu desgosto, não podia deixar de me sentir invadida por alguém que, sem escrúpulos, se apoderou do que não lhe pertencia, causando-me tanto prejuízo.
Quem seria o ladrão? Fora hábil, rápido e astuto para conseguir os seus intentos numa rua com tanto trânsito! “Estas coisas são muito frequentes”, “não são apanhados”, “é melhor cancelar os cartões bancários” “não merecem perdão” – eram vozes desconhecidas que, ao invés de me confortarem, só aumentavam a minha sensação de perda.
Nas mãos que ficaram vazias naquele fim de tarde tinha, agora, a informação de que fora identificado e preso o autor do roubo que sofri e estava a ser convocada para me apresentar no seu julgamento. Finalmente a justiça puniria o causador dos prejuízos materiais elevados, já que os morais e emocionais não o poderiam ser.
No dia e hora marcados, ali estava perto da Sala de Audiência, observando, com muito respeito e maior curiosidade, todos os movimentos de funcionários que passavam, em passo rápido, carregando as suas pastas.
À minha chamada, dirigi-me à porta que se abrira: à sua direita, três vultos que vi sem olhar e, nos respectivos lugares, as restantes entidades que compõem um julgamento. Era uma sala pequena de que gostei, por não me sentir intimidada, muito diferente do que imaginara pelas imagens vistas em filmes.
Num pequeno púlpito fiquei em pé. Várias e insistentes perguntas me foram feitas para que descrevesse o que se passara mas uma, a que recordo com nitidez, foi a que, pedindo que me virasse para trás, dissesse se alguma vez vira aquele homem, ladeado por dois agentes da autoridade.
Senti um choque muito grande: um jovem magro, de olhos claros e vazios, rosto envelhecido, olhava-me com curiosidade, frágil e indefeso, num olhar que nunca esquecerei! Um misto de solidão e hábito, pobre e desvalido, tentando encontrar na memória desgastada alguma imagem de mim.
Deixara registadas impressões digitais no roubo que cometera. Com esse facto foi confrontado pela Juíza que presidia ao julgamento. Respondeu que não se lembrava desse acontecimento: voltara ao vício da droga depois de um tratamento e, quando isso acontecia, sempre se afundava mais.
À pergunta que me foi feita, se queria ser ressarcida do prejuízo que sofrera, fui invadida por um sentimento de grande compaixão por aquele pobre homem e pelas suas circunstâncias. Veio à minha mente o perdão que Jesus nos oferece quando falhamos e a certeza de uma nova vida quando, arrependidos, O recebemos como Senhor e Deus.
“Nada quero receber” – respondi. “Apenas, e se me for permitido, dizer a este jovem umas palavras: que fale com Deus na sua solidão, procure ajuda de alguém que o encaminhe nessa busca, e experimente ser uma nova criatura com a Sua ajuda, ciente do Seu Amor para com ele, pronto para o ajudar num novo recomeço.” O que lhe estava dizendo já vira acontecer noutras pessoas prisioneiras do mesmo drama. Estava a falar-lhe duma realidade e não duma utopia.
Pediu-me perdão, assim como ao tribunal, e agradeceu.
Pela Dra. Juíza foi aconselhado a lembrar-se, em algum momento da sua vida, das palavras sábias que ouvira. E acrescentou:
– “Está livre! Pode ir buscar as suas coisas (à prisão de onde fora trazido para o julgamento), porque está livre”.
Respirou-se um ar de alívio em toda a sala. A defensora oficiosa enxugou as lágrimas. Os polícias que o ladeavam afastaram-se e tive oportunidade de o cumprimentar.
“… não têm perdão…” ecoava na minha mente uma das frases ouvidas naquele anoitecer tão triste para mim…
No regresso à vida em liberdade, era imensa a minha gratidão pela oportunidade de poder ter reflectido o AMOR de DEUS na minha vida e compreender, duma forma tão real, o valor do perdão que liberta da mágoa quem o oferece e, neste caso, deu liberdade à vida que o recebeu.
No meu coração e na minha mente, o eco das palavras do meu Salvador e amado Jesus quando ensinava como orar: “… e perdoa as nossas ofensas assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido!”
O sol brilhava, os meus passos tornaram-se mais leves, o amor tornou-se a nota dominante da música que tocava na minha alma e fiz uma das mais sinceras orações da minha vida: “Obrigada, Senhor”.
Lídia Pereira
Gestora de Recursos Humanos e Administrativos
Aposentada