AEP – Como surgiu o interesse pela Medicina na sua vida e a decisão de servir a população idosa?
HM – Deus vai escrevendo a nossa vida desde que nascemos. Nada do que nos acontece Lhe está oculto. Ao olhar para trás, para o meu percurso de vida, vejo cada página escrita com o Seu propósito. Fui tendo encontros com o sofrimento, que não foram por mim compreendidos na época. Geraram angústia, mas também grande crescimento.
O meu 1º grande encontro com o sofrimento por doença, ocorreu quando eu tinha 5 anos e o meu pai teve um grave problema cardíaco. A sua grave insuficiência cardíaca originou a sua morte prematura aos 59 anos quando eu tinha 16 anos. Durante 11 anos vivi o sobressalto constante de o perder, pois as crises e os internamentos sucediam-se. O seu sofrimento era intenso.
Este 1º encontro lançou uma semente – o desejo de minorar o sofrimento alheio.Fiz o Curso de Medicina.
O 2º grande encontro com o sofrimento aconteceu há 21 anos, com uma doença oncológica disseminada, com grave prognóstico, da minha mãe.
Fiquei a conhecer e vivi muitas das dificuldades porque passam aqueles que acompanham e cuidam de doentes em sofrimento e fase avançada de doença incurável. Nessa época ainda não havia Cuidados Paliativos em Portugal e era muito dificil gerir e controlar estas situações.
Foram dois anos de luta que me levaram à exaustão. No entanto, outra semente foi lançada – como ajudar e acompanhar este tipo de doentes?
Até essa altura trabalhava como Médica de Família num Centro de Saúde e confesso que a minha área preferida era a Saúde Materno-Infantil.
Mas outra semente tinha sido lançada. Abracei a Geriatria e aproximei-me dos Cuidados Paliativos, ainda embrionários.
Os últimos 18 anos da minha vida têm sido dedicados a estas áreas, na procura constante de resoluções para minorar o sofrimento e acompanhar o meu doente na sua trajetória final de vida, dando dignidade a essa mesma trajetória. Isto exige da minha parte contínua formação e trabalho de equipa.
Tenho sentido o enorme entusiasmo das minhas equipas de trabalho, o empenho, o zelo, o cuidado que têm demonstrado para melhoria constante da abordagem em fim de vida.
Tenho trabalhado em diferentes locais, com diferentes equipas, desde Apoio Domiciliário a Residências Geriátricas.
O 3º grande encontro com o sofrimento ocorreu há 10 anos, com o meu irmão mais velho. Em aparente estado de saúde, foi-lhe diagnosticada uma doença oncológica grave, terminal , com a qual convivemos 8 intensos meses. Também morreu prematuramente aos 58 anos.
A mão invisível do Senhor continuava a escrever as páginas da minha vida.
Pouco antes do seu diagnóstico, eu tinha iniciado uma Pós-graduação em Cuidados Paliativos. E com a ajuda preciosa dos meus colegas pioneiros dos mesmos, o trajeto do meu irmão foi vivido de forma totalmente diferente, com os seus desejos cumpridos, os seus sintomas controlados, com muito maior serenidade.
A minha preparação foi-se fazendo gradualmente por sementes que foram lançadas num terreno que estava a ser preparado. E a preparação desse terreno envolveu dor e sofrimento. Mais tarde, ao ver os frutos, compreendi o trajeto vivido.
AEP – Quais são as maiores necessidades dos idosos em Portugal, hoje, na sua perspectiva?
HM – Vivemos numa sociedade doente, com injustiças materiais e morais. Talvez uma das mais graves de todas seja a que os idosos sentem – a comunidade não os considera membros iguais aos demais.
Como cristãos somos chamados a agir em favor dos injustiçados, aceitando, estimando e integrando os nossos idosos.
Claro que cada idoso tem todo um percurso de vida que o marcou de diversas maneiras e a Bíblia nos adverte para a possibilidade de sermos rejeitados por Deus na velhice ( Salmo 71:9).
Perante a sociedade impessoal onde estamos mergulhados em Portugal e um pouco por todo o mundo, penso que as maiores necessidades dos idosos terão a ver com a falta de afeto e calor humano, falta de integração na sociedade, falta de quem os oiça e de quem os ajude a quebrar o ciclo da solidão.
Claro que existirão também necessidades materiais, a nível de cuidados de saúde, de alimentação ,etc.
A nossa missão para com os nossos concidadãos idosos, é ajudar a construir uma sociedade mais benevolente e integradora de todas as faixas etárias. É fazer despertar recursos e talentos pessoais enterrados há muito, estimular a criatividade, o entusiasmo por alguma tarefa, criar laços sociais que arranquem o idoso da solidão.
AEP– Vive o seu trabalho como uma forma de servir a Deus? Pode referir um versículo que tenha norteado o seu percurso de vida profissional?
HM – Há cerca de 18 anos, quando me comecei a dedicar à área da Geriatria, um versículo passou a acompanhar-me e lembrar-me continuamente da missão – “Confortai as mãos fracas e fortalecei os joelhos trementes” Isaías 35:3.
Numa área da Medicina que facilmente pode originar 2 sentimentos avassaladores, impotência e frustação, este versículo anima-me a batalhar dia após dia na procura do conforto e simultâneamente no fortalecimento do que ainda é possivel fortalecer nos meus doentes.
Falo em impotência, ao referir-me à morte inevitável, e que acompanha o dia a dia da Geriatria.
Falo em frustração, porque trato pessoas com doenças crónicas, múltiplas doenças na mesma pessoa, muitos sintomas que já não é possivel eliminar por completo, e raramente assisto a cura, o que acontece na Medicina exercida nas faixas etárias mais novas.
É uma Medicina de gestão de doenças crónicas.
Penso no meu trabalho como serviço ao próximo, ao encarar de frente o sofrimento alheio, não ficando indiferente, na busca constante de alívio do mesmo e de soluções para os problemas diários que vão aparecendo.
Isto exige disponibilizar tempo, gerir emoções, perseverar, aprender continuamente e estar na total dependência de Deus.
Dra. Maria Helena Martins