Era uma pequena aldeia, situada entre duas ribeiras, envolvida por belas paisagens e terrenos férteis, de vinhas, oliveiras e amendoeiras. Contudo, havia uma característica que a distinguia de todas as outras aldeias portuguesas: tinha apenas um habitante.
Ao longos dos anos, as famílias que ali residiam tinham-se mudando para outras localidades, talvez profissionalmente mais promissoras. Restava apenas aquele homem. Podemos imaginar o seu dia-a-dia? Como seria sair de casa, pela manhã, e encontrar à sua volta um amontoado de casas vazias? Não haver com quem conversar ou mesmo pedir ajuda? À condição dele em Adagoi, assim se chama a aldeia, poderemos chamar solidão objectiva, que significa, literalmente, a ausência de pessoas. Mais tarde, ele terá decidido ir viver para outra localidade, provavelmente para evitar esse isolamento.
Este não é o tipo de solidão mais comum nos dias de hoje. Ou seja, quando alguém nos diz que está só, tal não significa a inexistência de pessoas à sua volta. Habitualmente, refere-se a uma outra realidade, a chamada solidão sentida. Ou seja, é uma solidão que se transporta no íntimo, que acompanha a pessoa para onde vá, independentemente de quem esteja próximo de si. Por isso, o facto de sermos muitos, num qualquer evento por exemplo, não garante que a sensação de solidão não esteja presente.
Uma forma de trabalhar saudavelmente essa condição em cada um de nós, pode acontecer em duas vertentes: alimentarmo-nos e repartirmos entre nós o nosso pão.
Alimente-se
Aquilo que absorve a nossa atenção diariamente, e os pensamentos que ruminamos a partir daí, ditam em grande medida os contornos e a dimensão da solidão que sentimos. Se estivermos focados naquilo que não é alimento, poderemos dar por nós emocional e espiritualmente subnutridos e, inevitavelmente, sentirmo-nos sós, numa percepção árida e desvalorizante de nós mesmos, vivamos sós ou acompanhados. Por outro lado, Jesus assegurou-nos alimento diário, ao afirmar: “Eu sou o pão da vida.”(João 6:48, ACF) Jeremias sentiu esse conforto, mesmo no tempo difícil que viveu, tendo afirmado até “A minha porção é o Senhor.” (Lam. 3:24, ACF)
A leitura da Bíblia e a oração são duas fontes inesgotáveis de provisão. Conversar com alguém que nos escuta, aceita e oferece alento, pode ajudar a ultrapassar circunstâncias ou recordações que se constituam como factores de manutenção, ou até de agravamento, da solidão, no cumprimento do princípio bíblico “Levai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo.” (Gál. 6:2, ACF) Também existem recursos de aprendizagem, bons livros, músicas que nos elevam, pesquisa de temas que nos edificam, a contemplação da natureza, em momentos da chamada solitude, que significa estar só e saborear esse momento. Em todas essas circunstâncias, Deus pode falar-nos.
Alimente
Uma vez nutridos, acabamos por entender que a mesa de Deus é abundante e que Ele nos dá mais do que aquilo que precisamos. Assim, podemos partilhar tranquilamente o nosso pão com quem nos cruzamos, em momentos de proximidade, de ouvido atento, sensibilidade, palavras, acções de entreajuda.
Sinto-me muito grata a todas as pessoas que, ao longo da vida, me alimentaram, usadas por Deus, substituindo solidão por oportunidade de desenvolvimento pessoal. Assim, deixo aqui a recordação de dois momentos desses, como uma homenagem também, aos meus queridos e saudosos pais.
Duas pérolas preciosas
Numa das últimas vezes em que conversámos, o meu pai ofereceu-me um versículo bíblico. Ao longo da vida, ofereceu-me muitos, mas este teve um sabor especial, por ser o último e por definir um precioso princípio de vida. Disse-me que aquela passagem bíblica era para mim e referiu-a: “E dizei a Arquipo: Atenta para o ministério que recebeste no Senhor, para que o cumpras.” Colossenses 4:17. E guardo-o preciosamente, substituindo o nome Arquipo por Bertina…
A minha mãe tinha uma voz lindíssima. Muitas vezes cantou para programas de rádio, a então Ibra Rádio, e em eventos evangélicos, tendo chegado a gravar uma cassete de hinos, como se usava na altura. Recordo-me bem da última vez em que a ouvi cantar. Cantou para mim, pouco tempo antes de partir para a eternidade. Estávamos a conversar a propósito de alguns planos para a minha vida, sobre os quais eu não tinha a certeza, e cantou: “One day at a time, sweet Jesus…” Foi apenas a parte inicial deste belo hino, o que lhe permitia a sua saúde já frágil, e eu entendi a mensagem.
Sim, queridos pais, guardo comigo o vosso conselho conjunto: atentar no ministério que o Senhor me deu, para o cumprir, mas lembrando-me sempre que é um dia de cada vez!
Hoje mesmo
Se tem lamentado a solidão que sente, resista à tentação fácil de ficar à espera que alguém o(a) venha alimentar e angustiar-se por isso não estar a suceder como desejaria, pois esse apoio nem sempre está garantido. Comece por pensar em formas de se alimentar afectiva, mental e espiritualmente. Existem muitas oportunidades, como referi, providenciadas por um Deus que tem prazer em alimentar-nos, e que serão provisão, água fresca, mel, cura para feridas, vida.
Uma vez mais bem nutrido(a), irá sentir-se mais motivado(a) a tomar a iniciativa de se aproximar de outras pessoas e partilhar o seu pão. Outros irão alimentá-lo(a), usados por Deus. E, naturalmente, a solidão se irá dissipando.
“Quando a ansiedade já me dominava no íntimo, o teu consolo trouxe alívio à minha alma.” Salmo 94:19 (NVI)
Bertina Coias Tomé Psicóloga Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia Comunitária